6 de agosto de 2004

"O grupo começou com um anúncio de jornal"

In Se7e, 06 de Maio de 1987
Texto de António Macedo

Já foram quatro, apenas três, hoje são cinco. Gravaram «Circo de Feras», venderam mais de dez mil discos e fizeram, em três meses, mais de 30 concertos. Chamam-se Xutos e Pontapés, existem desde 1978 e começaram a já longa carreira com um anúncio de jornal: Zé Pedro e Zé Leonel publicaram-no; Kalu e Tim responderam.

E pronto: para já, para já, atingiram o cume de uma carreira iniciada vai para nove anos em instalações que custavam qualquer coisa como duzentos escudos à hora. «Os amplificadores para trabalharem tinham de levar alguns pontapés de vez em quando; a bateria quase não tinha peles; enfim, os outros instrumentos eram nossos.» Mesmo à «beirinha» de cumprirem o seu 31.° concerto da digressão «Circo de Feras», os Xutos e Pontapés recordam, sorridentes, esses tempos da «baliza às costas». Hoje são uma das poucas bandas-sucesso que resistiu à «vida e morte do rock português» dos últimos dez anos. É disso que falamos. Zé Pedro já conhecia Zé Leonel. Tocava guitarra, o seu amigo cantava, não havia muito regressara de um grande Festival Internacional Punk e entendia que essa «música rebelde» também podia ter expressão em Portugal.
Um anúncio no jornal: «Baterista e baixista precisam-se para grupo punk». Responderem dezenas, Kalu e Tim são aceites, nascem os Xutos e Pontapés. Quarteto nesta primeira fase, primeiro ensaio a 20 de Dezembro de 1978. «Na Senófila, aqui em Lisboa», recorda Zé Pedro. Instalações que os albergaram durante qualquer coisa como três anos. Já se disse: pagaram cerca de 200 escudos por hora de ensaio, não tinham as melhores condições de trabalho, a maior parte do material ia de casa, levado pelos músicos. Fala, Zé Pedro! «0lha, esta primeira fase do grupo era, assim, uma espécie de brincadeira: funcionava apenas a nossa vontade de tocar, de estar em cima de um palco, gozávamos todas as situações e não tínhamos quaisquer preocupações quanto ao tempo de vida do nosso projecto — um dia, um mês, um ano...» Pois, hoje é diferente. Lá iremos, em tempo, com tempo. Nesse tempo, os Xutos eram esses que já foram recenseados: Zé Pedro e Zé Leonel (os da ideia, os do anuncio), Kalu e Tim (os que responderam e concordaram). Assim permaneceram até ao início de 1981 com muitas actuações ao vivo e com uma primeira apresentação no Pavilhão do Belenenses, «abrindo» para Wilko Johnson e os seus Solid Senders em 23 de Fevereiro.
Sai Zé Leonel, entra Francis Nunes. Estamos em Fevereiro de 1981, os músicos do grupo tinham a sua carteira profissional desde há um ano, o concerto com os Solid Senders já lá ia, a banda iniciava a sua segunda etapa numa altura em que o chamado «rock português» jogava os seus trunfos principais.
«Passamos ao lado disso tudo, não gravamos para nenhuma grande editora e isso foi importante para a nossa sobrevivência.» Hoje, é possível fazer história, analisar os passos do passado, fazer o inventário de vitórias e fracassos. É o que faz, para o «Se7e», Zé Pedro: «Habituámo-nos a contar apenas connosco, a ser auto-suficientes. Sempre entendemos que não devíamos gravar apenas por gravar, mas que as nossas posições no mercado deviam ser conquistadas. A nossa batalha era outra e só então começava. Acreditávamos em nós.» Esta é a segunda fase dos Xutos e Pontapés. Aquela que corresponde à permanência de Francis Nunes no seio do grupo. Até Maio de 1983 os Xutos gravaram os dois primeiros singles e o primeiro álbum para a editora Rotação, mas, para além disso tudo, define o seu som, marca o seu espaço...
Fica publicamente reconhecida a importância de Francis Nunes, músico que tocava no conjunto de baile em que o baterista Kalu fazia os seus exercícios: «Foi ele quem ajudou a limar o nosso som, a defini-lo. É um óptimo músico, com ideias muito próprias, capaz até de trabalhar em produções. Foi ele quem contribuiu decisivamente para uma maior elaboração das novas composições, dando-lhes voltas a que não estavam habituados. Os Xutos e Pontapés deixavam a fase das «três notas mais refará e está feita uma canção», entravam em novos esquemas de composição. Bom-dia!
Entre Maio e Novembro de 1983 os Xutos e Pontapés enfrentam o «grande desafio: a editora a que estavam vinculados (a Rotação) faliu, Francis Nunes entendia que era o momento próprio de «dar o salto» para uma grande editora, Zé Pedro, Tim e Kalu entendiam que não. É a ruptura. Francis Nunes sai dos Xutos (transferindo-se para os UHF) e a banda vive, durante alguns meses como trio. «Trata-se do grande desafio», recorda Zé Pedro. «Começámos tudo do zero, embora com redobrada energia e já não por brincadeira, como no início. Acreditávamos em nós e, subitamente, demo-nos conta que muito mais gente tinha a mesma crença. Fizemos montes de concertos em montes de pequenos clubes. Era o que queríamos: batalhar esse circuito, conquistar cada vez mais público...» Zé Pedro não esconde que essa terá sido uma fase determinante na vida da formação: «aquela em que todos sentimos ser possível prosseguir, marginais ou não, mas capazes de conquistar, a pulso e à nossa própria custa, um lugar, um espaço, na música moderna portuguesa. Está conquistada, vamos lá ver no que tudo isto irá dar.» Com a entrada do guitarrista João Cabeleira em Novembro de 1983 e, mais tarde, do saxofonista Gui (que já tocara com o grupo como convidado), os Xutos e Pontapés alcançam a estabilidade. É a quarta época da vida da banda, aquela que ainda perdura, aquela de onde sairá apenas para a «morte». Zé Pedro garante-o: «Se algum de nós saísse nesta altura era o fim dos Xutos e Pontapés." Porquê? «Porque os Xutos e Pontapés somos nós cinco, sem líder, trabalhando sempre em conjunto e por consenso. Não há o menor atrito pessoal ou profissional entre nós. Somos os Xutos e Pontapés e, por enquanto, assim continuaremos... Pois. O dia de amanhã ninguém o conhece. «Atingimos um ponto grande na nossa carreira, pensamos que podemos ir mais longe mas, atenção, quem chegar alto como nós arrisca-se a uma queda maior. A única coisa que eu queria é que tivéssemos consciência do momento ideal para parar. Acho que não devemos continuar se começarmos a mastigar. A partir de agora tem de ser sempre para a frente e a subir...»

Não à campanha eleitoral
«Como não concordamos com a realização destas eleições, em princípio não iremos colaborar em qualquer campanha.» Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés, em «discurso directo». Pela primeira vez desde há alguns anos, o grupo não irá colaborar na campanha de qualquer partido. Não que o grupo esteja arrependido de anteriores envolvimentos; apenas este ano é diferente. Diferente porque o grupo, como disse Zé Pedro, não concorda com a realização de eleições; diferente porque os Xutos acham que não vai ser possível reunir as condições de trabalho que tiveram no ano passado a convite do PS: «fizemos apenas cinco concertos, mas em festas durante as quais não havia discursos políticos. E isso, para nós, é muito importante.»
Tocaram sempre nos arredores de Lisboa e recusaram apresentar-se em festas da campanha presidencial de Freitas do Amaral: «ele pagava mais do que qualquer outro, mas tínhamos decidido só trabalhar para partidos ou candidaturas do PS, para a esquerda, e não nos deixamos tentar pelos elevados cachets que nos foram oferecidos.» Este ano, porém, os Xutos estão indisponíveis...

De Madrid a Lisboa.
31 concertos em três meses
Um palco com 20 metros de frente e 10 de fundo acolhe sexta-feira os Xutos & Pontapés no Pavilhão de «Os Belenenses», em Lisboa, para o concerto final da primeira fase da digressão «Circo de Feras». O início desta digressão dos Xutos & Pontapés coincidiu com o lançamento do álbum homónimo, o primeiro gravado pelo grupo para uma «grande editora». Estávamos a 5 de Fevereiro e o grupo actuava, então, na Sala Templo del Gato, em Madrid. Ao longo destes três meses, os Xutos realizaram 31 concertos e já na semana da «apoteose», no Restelo, Zé Pedro, habitual porta-voz do grupo, exprime uma enorme satisfação: «nunca tínhamos tocado tanto, para tanta gente em tão curto espaço de tempo». No Restelo, para termo da primeira fase da digressão, os Xutos & Pontapés vão fazer um espectáculo de mais de duas horas, portanto relativamente mais longo do que todos os outros. O palco de vinte por dez metros terá um cenário especial concebido pelo baterista Kalu e a banda irá dispor da «melhor aparelhagem possível»: qualquer coisa como dez mil watts de som. Pela primeira vez os três guitarristas dos Xutos podem utilizar transístores o que facilitara a movimentação do palco. Carlos Maria Trindade, produtor do álbum «Circo de Feras» actua como convidado em dois temas: justamente no «Circo...» e em «Contentores». Segundo Zé Pedro, «todas as canções do álbum fazem parte do roteiro do concerto o qual não deixa de ser, fundamentalmente, uma viagem pelo nosso reportório de oito anos de carreira». Temas nunca gravados anteriormente e um instrumental inédito foram, também, seleccionados para a «grande apresentação» de Lisboa a qual deve ser presenciada por cerca de oito mil pessoas.


Quem são eles?
Já foram um trio, já constituiriam um quarteto. Hoje são o quinteto Xutos e Pontapés. Um por um são assim:Zé Pedro, guitarrista — É o mais idoso dos Xutos e Pontapés. Tem 30 anos de idade, guitarrista, autodidacta. O grupo começou, muito por «culpa» sua quando o primeiro anúncio foi publicado nos jornais.Tim, baixo — Tem 26 anos de idade, está nos Xutos e Pontapés desde o início. Quer dizer: era o único baixote que podia participar no concurso promovido por Zé Pedro e por Zé Leonel nos finais de 78. Estudou no Conservatório.Kalu, bateria — Tem 28 anos de idade e é gerente de uma fábrica de cortiça. Por outras palavras: Trata-se do único músico não profissional dos Xutos e Pontapés embora faça parte da banda desde a sua fundação. Tocava em conjuntos de baile antes de se juntar aos Xutos.João Cabeleira — Tem 24 anos de idade. Juntou-se aos Xutos e Pontapés depois da «morte» da Vodka Laranja e isto numa altura em que o grupo já trabalhava bastante com este guitarrista.Gui, saxofone — 29 anos. Antes de se juntar aos Xutos, pertencia aos On Off e aos Casino Twist. Começou por ser músico convidado dos Xutos e Pontapés, mas não tardou a alcançar o estatuto de músico principal.

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