3 de agosto de 2004

"Somos um bom negócio"

In Se7e, 04 de Fevereiro de 1987
Texto de Cláudia Lobo


Amanhã, quinta-feira, começa a «tournée» ibérica dos Xutos e Pontapés e é posto à venda o novo álbum da banda, «Circo de Feras», cuja primeira edição de três mil discos já esta esgotada. O «Se7e» fez, com os Xutos e Pontapés, uma incursão na noite lisboeta.

São seis e meia da tarde de quinta-feira, estamos junto da estação dos comboios de Carcavelos. Os Xutos e Pontapés — Tim, Zé Pedro, Kalu, João Cabeleira e Gui — chegaram há pouco de Lisboa. Descemos para uma garagem minúscula, toda forrada de cortiça. Posters dos Xutos, Talking Heads, GNR, Tina Turner e Lord of the New Church escondem o castanho das paredes. Num canto, há um bar à medida daquela sala pequena, noutro canto está a bateria. Espalhados pelo pouco espaço que resta, vêem-se fios, caixas, amplificadores e colunas. «Isto até parece a nossa casinha», diz Zé Pedro a rir. Os Xutos encontraram-se para ensaiarem o seu disco novo, «Circo de Feras», e algumas composições antigas que vão interpretar durante uma tournée ibérica, a partir de amanhã, em Madrid. Arrancam com «Desemprego», a música preferida de Tim. Todos têm atitudes e maneiras diferentes de estar: João não tira os olhos da guitarra, Zé Pedro parece não ligar a nada. Tim tem um ar divertido enquanto canta, Gui e Kalu olham muito um para o outro — há que saber quando entram os coros. «O nosso objectivo principal é agradar às pessoas.» Duas horas depois, o ensaio termina. Há que voltar depressa para Lisboa. À noite, os Xutos e Pontapés vão à «Quinta do Dois». Mas, antes da partida, ainda arranjam tempo para as fotografias — juntam-se no meio da sala e Gui pergunta: «As fotos são a cores?» «Não, são a preto e branco», responde o fotógrafo. E Gui explica — «É que tenho uma camisola azul...» Os outros estão todos vestidos de preto...
Na viagem, fala-se de outras viagens — como a Ida a Barcelona, em Dezembro passado. «No primeiro concerto, estavam 60 pessoas. Começámos a tocar às 2 da manhã e só parámos às 5, porque os gajos não nos largavam», explica Tim. «No dia seguinte a sala estava cheia: as 60 pessoas que estiveram no espectáculo do dia anterior convenceram os amigos a irem ver-nos...» Aliás, com os Xutos, este é um «fenómeno» habitual. Zé Pedro: «Houve sempre uma série de pessoas que tiveram de convencer os amigos de que nos éramos mesmo muito bons. E os amigos, que iam à espera de ver uns tipos com as guitarras desafinadas, cada um a tocar para o seu lado, ouviram três letras que lhes tocaram como o caraças e à quarta canção até bateram o pé. As pessoas que nos defendiam tiveram que o fazer com raiva, porque não éramos conhecidos. Até exageraram nas apreciações...» A verdade é que os Xutos foram conquistando o público a pulso, devagar e lentamente, e hoje têm uma «legião» de fiéis admiradores que não falham um espectáculo. E até já existe um clube de fãs: «Desde há muito tempo que recebemos cartas e não temos paciência para responder, nem para juntar tudo e fazer um arquivo», responde Zé Pedro. «Quando o Victor Silva, o nosso manager, começou a trabalhar connosco, montou um escritório onde recebe as cartas: é lá a sede do clube de fãs. Ele envia fotografias, t-shirts e discos a quem lhe pede.» Poucos músicos portugueses se podem gabar de ter uma «organização de fãs: «É natural, as pessoas habituaram-se a agarrarem-se a nós», continua Zé Pedro. «Eu gostava muito de grupos portugueses como o dos Tantra — o meu ídolo era o Filipe Mendes — e até tinha gostado de falar com eles, de usar uma t-shirt com o retrato deles...» A conversa deriva para a questão da imagem. «Fizemos um teledisco com o tema “Sai P'ra Rua”. Se temos e vivemos uma imagem, diz Zé Pedro, gostaríamos de a ver, tal como a sentimos, projectada num trabalho completo.» Fala-se de visual e os Xutos dizem não se preocupar com isso. «Não sentimos nenhuma responsabilidade perante o público, mas também não conseguiríamos, por exemplo, vestir-nos de branco — as nossas coisas têm que “bater” cá dentro... Acima de tudo, temos que ser verdadeiros connosco: a partir daí, não podemos perder tempo a pensar se as pessoas gostam ou não.» Janta-se numa cervejaria, bifes e bacalhau-à-brás. A conversa vai animada, fala-se do duplo ao vivo que, afinal, nunca chegou a sair: «O disco estava gravado mas a editora, a “Dansa do Som”, com a desculpa de que o dono se encontrava em Londres, nunca mais fazia sair o disco. O processo complicou-se e chegámos a uma situação em que a banda queria andar para a frente e a editora puxava para trás.» Situação de ruptura, então, com a “Dansa do Som”? «Esperamos que venham falar connosco, como deve ser, com os papéis na mão. Ainda nem sequer recebemos os royalties dos discos que gravámos para essa editora...» Com “Circo de Feras” tudo se passou de uma maneira diferente «Neste disco, conseguimos estabelecer e cumprir um plano de produção, diz Tim. «Não desejamos “embandeirar em arco” — não é esse o nosso papel — mas, no fim de contas, queremos medir a eficácia do processo, porque, agora, sabemos o que falhou e o que correu bem.» O que está a correr realmente bem é a saída do disco: uma semana antes de “Circo de Feras” ser posto à venda, os três mil exemplares fabricados não chegavam já para responder aos pedidos das discotecas. E a semana passada, o tema de abertura do álbum, «Contentores», subiu ao sexto lugar do top da Rádio Cidade. «Preferimos trabalhar assim, pela medida certa, sem investimentos de milhões. Queremos provar a toda a gente que se pode fazer uma coisa dos diabos com pouco dinheiro. Sempre tivemos a sensação de que éramos um bom negócio!» Toma-se café. João Cabeleira continua pouco falador — «Ó João, vê lá se te calas que já não te posso ouvir», diz alguém em tom de brincadeira. Zé Pedro e Kalu riem-se. Tim discorre sobre o desafio que é trabalhar para uma multinacional, editar um vídeo, ou aceitar tantos espectáculos: «Queremos ver até onde podemos ir. Porque havíamos de dizer que não, antes de experimentarmos? O sucesso não assusta os Xutos que não têm medo de perder a “imagem de marca” de “banda marginal”: «Não tem valor nenhum ser marginal e lutar por coisas que, depois, não resultam, que saem frustradas. Mais vale provar que se consegue fazer bem: não podemos andar por aí a dizer que somos bons mas é em casa, que somos bons mas é na nossa escola, na nossa rua...»
É quase 1 hora da madrugada. Bairro Alto, pois claro, para não fugir ao roteiro nocturno quase diário dos Xutos e Pontapés. Chegámos a esquina da Travessa do Cara com a Rua do Diário de Noticias: é uma casa de matraquilhos. Jogam com o Botas e o Paulo Morrison — que deram uma «mãozinha» no disco — falam alto, gritam, estão entusiasmados com a partida.
«Queremos arranjar uma mesa de matraquilhos para jogarmos durante o tournée...», diz Kalu. E riem-se com a ideia de jogarem em cima do palco, antes do concerto começar. Ali, naquele bairro, jogam no seu terreno. Conhecem quase toda a gente que por ali passa, sabem os cantos à casa e as noites. Saímos dali para o «Gingão», uma das tascas típicas do Bairro Alto, frequentada por «habituées» da noite: meninas de mini-saia de cabedal e cabelos em pé convivem «alegremente» com os moradores da zona. Repete-se a cena: os Xutos entram, cumprimentam meio mundo. O sr. Aníbal, dono do «Gingão», conhece-os bem: vão lá quase todas as noites, desde que o «Bolívar» mudou de proprietário. E quando saiu o ultimo «single» da banda, o sr. Aníbal até dava dinheiro ao filho para por o disco a tocar na velha «juke-box»...O único elemento dos Xutos e Pontapés que tem dupla profissão é o Kalu, que trabalha numa fábrica de cortiça. Os outros já «largaram» os estudos e os empregos. «Há sempre uma altura em que a gente toma a decisão de sair para a rua, de arriscar. Se não der, paciência... Temos de acreditar em nós próprios — se eu não acreditar em mim, quem é que acredita? Já passa das 2 da manhã, o «Gingão» vai fechar. Há que continuar a noite. Os Xutos partem, então, em direcção ao Cais do Sodré, vão para o «Tokyo». Lembro-me do que Zé Pedro dissera, pouco antes: «Queremos é viver isto assim, depressa: festas, champanhe, coisa e tal...» Passaram cinco anos sobre a edição do primeiro single dos Xutos & Pontapés, «Sémen». Alguém os viu passar?
O culto — Dificilmente se descobre em Portugal um grupo de rock — ou um cantor de musica ligeira ou um qualquer músico ou uma figura pública no sentido mais lato — que tenha uma legião de seguidores, em crescimento, tão segura e tão incondicional como a dos Xutos & Pontapés. Escrevi, e mantenho, que eles me parecem ser a única banda de culto portuguesa. Pela simples razão que são e pensam aquilo que cantam. E nem sequer se esforçam para mudar a forma, para modelar as ideias e os «gritos de guerra». Antes de mais nada, os Xutos são uma emanação de uma certa juventude (sub)urbana, potencialmente marginal, repetidamente marginalizada. São, nessa medida, um grupo de geração, despreocupado em relação à hipótese de agradar a gregos e troianos. Como poucos, eles definem o público que querem, definindo em cada canção que não se dirigem aos tecnocratas com hipóteses de virar JEEP'S nem aos estudantes-modelo nem aos pacifistas passivos nem aos meninos Benetton. Se vivêssemos na América, os Xutos seriam o exemplo acabado do grupo “downtown”, disposto (e destinado?) a não pintar cores garridas no que é cinzento e negro. Muitas vezes sujo e duro. Daí, o fenómeno da identificação, total e ingénua, importante para quem pode ver as suas palavras cantadas por um «gajo fixe» que faz parte de um grupo que não brinca. Pode argumentar-se que essa concisão acabara por corresponder a um círculo fechado, a um compartimento estanque, juvenil e mutante. Para já, a «seita» alarga-se, se tivermos em conta os primeiros números relativos a “Circo de Feras”. Sem que os Xutos façam a mínima cedência, o mais pequeno recuo relativamente à sua politica do «forte e (quase) feio». Culto, assim mesmo, na cidade que tantas vezes queremos ver só de um lado.
A música — Quem vier procurar a elegância na melodia ou o requinte da instrumentação, voltará a esbarrar na violência multiplicada das guitarras e da secção rítmica — não há um “rodriguinho” além da essência, não há um truque para tornar
“agradável” a audição de um único dos temas. Tudo nos Xutos & Pontapés — mesmo com os acertos eventuais da produção de Carlos Maria Trindade – é feito “sem anestesia”. E, nesse aspecto, “Circo de Feras” não é diferente nem novo. E só o som dos Xutos, forte e de adesão (ou repulsa) imediata. João Cabeleira, um dos guitarristas, foge aqui e ali à marcação mas não se perde em «flores». E o saxofone de Gui é só um reforço à electricidade pouco estática. Por isso, por muitos discos que os Xutos façam, a sua verdade é o palco. Por isso, “Circo de Feras” e só um meio para o fim — o conhecimento das canções. A música, às vezes, também é isto: cortar a direito.
O texto — Quando se escreveu que «a cantiga é uma arma», o contexto era outro. Mas o conceito serve aos Xutos que, na prática, cantam como falam. Outra vez sem «nuances». Dos títulos – «Contentores», «Desemprego», «Pensão», «Vida Malvada», «Sai p’ra Rua» – ao primarismo de cada refrão, joga-se aqui com a verdade destes músicos e de quem os apoia. Não há experiências, nem beleza, nem poesia – há um retrato radical da falta de horizontes, de uma qualquer ansiedade que tem a ver, também, com oportunidades perdidas... Quem os segue, sente-os como porta-vozes. Quem não os sente, pode pensar que repetem infinitamente a mesma canção. Porque os textos que os Xutos & Pontapés cantam não são construídos nem montados — são apenas desabafos, atitudes, gritos e acontecimentos de todos os dias. Ou, se se quiser, são textos de uma certa resistência.
A capa — Negro sobre azul. Se fosse ouro, era mentira. Mas Álvaro Rosendo não cairia num erros desses. Com o cenário natural da cidade, os Xutos estão em casa: na noite e na rua.
A obra — Começa aqui o novo ciclo dos Xutos & Pontapés, gravados e publicados e divulgados por uma editora poderosa. Até agora, os quatro singles e os dois álbuns que assinaram não chegavam, muitas vezes, a quem os queria, tornaram-se (também eles) objectos de culto. A partir daqui, vamos saber até onde pode ir este grupo, quanto lhe rende e quanto lhe custa esta mudança de estatuto, tantas vezes fatal. Uma coisa é certa: se mudarem de direcção, morrerão rapidamente. Mas, depois de ouvir «Circo de Feras», a hipótese parece-me cada vez mais académica. Cinco anos depois de “Sémen”, os Xutos & Pontapés estão, de pé, no mesmo sítio. A juntar mais um disco inteiro à sua “obra ao negro”.

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