2 de agosto de 2004

"Remar aos Xutos e Pontapés"

In se7e, 01 de Agosto de 1984
Texto de Rui Pego

Depois de uma pausa de dois anos, os Xutos e Pontapés voltam a subir o rio do êxito. “Remar, Remar” é o título do single. A proposta do grupo continua a ser “o gozo total”.

A coberto de uma prosaica partida de matraquilhos, Zé Pedro negoceia com Pedro Ayres o abandono da clandestinidade. O desafio salda-se por um empate comprometedor para ambas as partes: ali mesmo na tasca do António, ao Bairro Alto, os Xutos e Pontapés quebram um vinílico jejum de dois anos. A selar o contrato, um single: «Remar, remar». Para ajudar a nova maré. «A nossa proposta continua a ser o gozo total», dizem os dois guerrilheiros do rock.«Estávamos decididos a gravar por nossa conta e risco», asseguram os Xutos, emboscados atrás de violentos copos de cerveja ao balcão da Brasileira do Chiado.Há dois anos, sem qualquer contacto com o negócio da música, defendem a inversão de sentido nas relações entre músicos e editores: «Devem ser as editoras a procurar as bandas e a lança-las para um público específico...» Cassete na mão, a bater à porta das companhias de discos tem sido a prática repetida de sucessivas levas de músicos. Transportam quase sempre propostas difíceis de vender e esbarram, nalguns casos, com editores presos aos indicadores de vendagem e completamente divorciados das outras realidades, que se vivem para lá das vidraças do gabinete. «Entre Setembro de 1983 e Fevereiro de 84, tocámos todos os fins-de-semana. Num só mês fizemos 11 concertos em Lisboa e arredores. Não me lembro de ver entre a assistência – é Tim que o afirma – nenhum editor». Lançados no mercado em 1981 por António Sérgio, que liderava na altura o projecto «Rotação» (uma etiqueta encaixada nas deficientes estruturas da desaparecida «Rossil»), os Xutos e Pontapés publicaram até agora dois singles e um álbum, que atingiram números de vendas significativos para o contingentado mercado português: «Sémen», o single de estreia, vendeu mais de 3000 cópias em 1981; os mesmos números foram atingidos, um ano depois, pelo single «Toca e Foge» e pelo LP «Leo». Cifras alcançadas apenas em Lisboa e arredores. À província o material gravado pela banda chegou através dos circuitos paralelos... Zé Pedro: «Um amigo meu comprou a cassete do “Leo”, as 4 da manhã, a caminho do Algarve.» Ao virar a agulha para a música popular portuguesa (a do bombo e dos ferrinhos) a indústria deixava cair um projecto que provou as suas virtudes. Incompreensão? Tim: «Não é verdade que tivéssemos sido incompreendidos. Também não estávamos interessados em tornarmo-nos “entendíveis”. Só temos a agradecer às pessoas. Obrigado, pessoas!»Os equívocos da euforia roquista foram construídos em cima de uma turva (sempre denunciada, de resto) política editorial seguida entusiasticamente por algumas discográficas pouco escrupulosas que acabariam por cair nas armadilhas que teceram a arrastar consigo algumas dezenas de jovens músicos, generosos e pouco esclarecidos. Tim: «Nunca acreditei em bandas que se formam sem apoios e visem conquistar o público... Hoje os projectos são personalizados, as propostas são mais sérias e veiculam valores partilhados por muita gente.» Valores que nem eles próprios sabem definir com exactidão. Comuns a algumas bandas da nova música moderna e a um público específico que se agita numa saudável cumplicidade, à volta dos seus preferidos. E esta nova atitude que transforma o acto isolado de um concerto na intervenção consciente, solidificadora das bases de um movimento que se agiganta pelos seus próprios meios. Que não depende, vive para lá das relações dos seus efémeros protagonistas com os circuitos de comercialização e divulgação da música. «Há hoje um público disponível e interessado em ver o que está a fazer-se. Pode já falar-se de um “movimento”. Zé Pedro justifica a ousadia da afirmação: «O público da música moderna e constituído por gente muito nova, que criou as suas próprias defesas contra a cultura dominante e deixou conscientemente de depender dos padrões que os media procuram impor. Para a voz dos Xutos (Tim), o movimento de que agora se fala, nunca ruiu: «Os miúdos que compravam os nossos discos em 1981, nunca desistiram de vir a cantar, também eles, as suas próprias ideias.» E os novos rockers comecam a rasgar boas perspectivas para saltarem da periferia para o centro de uma crise que o mercado dos discos persiste em reflectir. Ainda Tim: «Ao nível da gravação de discos há, boas perspectivas. O que é precise é não se apontar para o disco de prata. Esta música tem um público específico...» Que é urgente servir.«Não queremos que as editoras apostem muito em nós. Apenas o essencial», diz Zé Pedro. Com os «selos» de duas editoras estão já no mercado outras tantas preciosidades da nova música: Sétima Legião e Rádio Macau. A nova música moderna (o conceito não é limitado no tempo) começa a ganhar, decisivamente, fôlego de alternativa: GNR e Xutos e Pontapés exibem só novas produções; os Croix Sainte preparam-se para gravar o álbum de estreia; outros contratos começam a ser negociados. Neste assalto ao mercado, a luta é travada com armas desiguais. Tim: «A nossa única vantagem resulta da experiência que trazemos do passado. Se estivéssemos a arrancar agora depararíamos com os mesmos problemas. Experimentamos, de resto as mesmas dificuldades de divulgação.» Espaço para desenvolver e aplicar as capacidades é o tom geral das reivindicações dos novos músicos; furar o muro de impedimentos e desinteresse que rodeia a arte neste país, é a primeira intenção. Será possível ter esperança? Restam dúvidas. Muitas. Daí, talvez, a angústia de que se alimentam alguns projectos. Como o dos Xutos... Tim: «Não posso recusar que a nossa música transporta uma certa angústia.» A estética da depressão? Zé Pedro: «A nível estético, o único dado seguro é a simplicidade. Tentamos fazer as coisas com simplicidade, utilizando os meios mais eficazes.» Para lá da música dos Xutos, descobre-se a atitude: a liberdade (levada às últimas consequências) como única e derradeira resposta às estruturas repressivas da sociedade.«O poder é o poder. É uma coisa à parte, que não tem relação com nada nem com ninguém.» Para os Xutos e Pontapés, esta afirmação define apenas um comportamento, que não é, sequer, alternativo. Tim: «Não nos compete fornecer alternativas de qualquer natureza, mas apenas contestar o que está errado.» Talvez por isso, «gostamos muito mais das oposições...» Tim, quer explicar: «O sistema é demasiado simpático. Não se fazem opções consequentes de oposição ao poder para não quebrar a harmonia. Portugal é um país familiar. Às vezes é preciso partir uns pratos...» Muito críticos em relação à organização familiar tradicional, os Xutos não rejeitam, liminarmente, aquele tipo de organização social: «A família, enquanto “clã protector”, é importante, mas leva quase sempre longe demais a sua intervenção). É esta vocação que a torna altamente repressiva." Para Zé Pedro, que assegura nunca ter experimentado confrontos graves com a família, «é urgente reformular conceitos. A família ideal não é repressora, não impõe padrões. Procura, pelo contrário, incentivar e alimentar as tendências manifestadas pelos seus membros». É, talvez, esta «rebeldia» que arrasta atrás da banda uma legião de incondicionais seguidores. Tim: «Não sei se é uma legião, mas há gente que nos apoia e que não exige de nos qualquer compromisso. Respeitamos muito quem nos segue, mas a nossa relação é exclusivamente com a música. Declinamos qualquer responsabilidade ao nível da imagem.»Também rejeitam o estatuto de líderes de franjas da juventude portuguesa. Adversários dos padrões impostos de cima, descomprometidos com o seu próprio público, eles vivem a plena liberdade. «A nossa proposta continua a ser o gozo total. Tocar nem sequer é uma necessidade monetária, e um vício.» Portadores de vivências diferenciadas, os quatro Xutos fazem convergir e deixam fluir no projecto da banda, as suas personalidades, evitando a todo o custo serem devorados pelo colectivo. «Reside aí a nossa grande vitalidade. Habituámo-nos a alimentar a nossa criatividade das experiências de cada um, das dúvidas de todos. A nossa música acaba por ser a síntese das várias referências de personalidades independentes.» Alimentar-se de dúvidas... «A nossa grande sinceridade é assumir cada concerto como se fosse o último.» Desorganizados (para os ortodoxos), talvez mesmo inconsequentes, acreditam em quase nada. Perderam até uma das poucas certezas que guardavam secretamente: pensávamos acabar quando o Kalú (baterista) fizesse 30 anos. Dávamos um concerto importante, fazíamos qualquer maluquice e pirávamo-nos para casa...» O último concerto parece estar cada vez mais longe. O vício é mais forte. Por agora!

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